Merece Destaque!
[CRÔNICA – PARA CONCURSO 2023 SINDICLUBES]
A Enciclopédia
Como última tentativa fui à biblioteca do Clube. Quem sabe ali encontrasse o abrigo adequado para a Enciclopédia. O responsável pelo local, atencioso como sempre, ele próprio um apreciador dos livros e da boa leitura, ficou compadecido, mas seguiu o protocolo. Não há espaço disponível e ninguém mais se interessa por consultar os volumes de enciclopédias há muito tempo.
Os “sebos”, livrarias que compram e vendem livros usados, já haviam sido consultados antes. E a resposta era sempre a mesma. Não aceitam nem em doação uma enciclopédia. Ocupam espaço demais nas prateleiras, as informações em geral estão desatualizadas. Quem vai se interessar?
Um dileto amigo, que há quase quarenta anos tenta dar por encerrada a obra da sua biblioteca, foi uma esperança nessa busca por um destino para a Enciclopédia. E aí uma das Leis de Murphy se materializou: o camarada já tinha duas! Além da Barsa, no acervo consta também a Delta Larousse.
Pensei nas bibliotecas de presídios, para as quais já havia feito pequenas doações no passado. À moda antiga, escrevi cartas, fui a agência de correios, apliquei alguns trocados, e roguei aos deuses que protegem os bons samaritanos proteção divina para a empreitada.
Decorrido quase meio ano desde que expedi umas 25 cartas, recebi três respostas. Já temos uma enciclopédia; a biblioteca foi fechada por ordem superior das autoridades carcerárias; e uma resposta no mínimo hilária: O detento que durante 45 anos cuidou da biblioteca do nosso instituto correcional faleceu ano passado e não encontramos até o momento alguém para substitui-lo. Ademais, não sabemos o que há no acervo pois a chave sumiu e estamos aguardando ordem judicial para chamar um chaveiro para abrir o salão onde ficam os livros.
A Enciclopédia Barsa era vendida de porta em porta nos anos 1960. Pagava-se em prestações e logo aqueles 23 volumes encadernados em percalina vermelha e letras douradas na lombada podiam ser exibidas aos vizinhos menos aquinhoados. Meu pai leu metodicamente todos os volumes e sempre que encontrava algum erro ortográfico anotava na margem, com lápis.
Depois, mandava uma carta aos editores.
Não consta na minha memória que, pela colaboração, ele recebesse gratuitamente o livro do ano, uma edição que atualizava verbetes e incluía tantos outros novos. Foram trinta volumes, até a chegada do século XXI. E todos chegaram às minhas mãos.
No último ano do século XX, por falta de espaço no apartamento e ausência de uso, levei a enciclopédia e todos os volumes anuais para a biblioteca da instituição onde trabalhava. Lá ficaram aqueles quase sessenta volumes por uns vinte anos, emoldurando uma das estantes, com uso muito parco. Aposentei-me e fingi que havia esquecido a enciclopédia. Afinal, aos poucos havia me desprendido afetivamente dela. Eu já tinha convencido meu pai, que passou dos 100 anos totalmente lúcido, a não mais comprar o Livro do Ano.
Dia desses a bibliotecária avisou-me: A biblioteca física será reduzida e temos aqui a sua Barsa com os livros do ano. O senhor pode vir retirar quando? Vejam que a assertiva da bibliotecária foi direta, sem chance de qualquer tentativa de preservar a enciclopédia.
Fiz as tentativas aqui relatadas. Não encontrei o abrigo adequado para os livros. Recebi novos alertas e advertências da bibliotecária. Por falta de coragem, não quis viver a emoção de manusear novamente aqueles livros nos quais encontraria a inconfundível letra miúda e legível do meu pai. Ou encontrar algum verbete no qual eu próprio fiz anotações e uso em algum trabalho escolar ou na universidade. Não sei e nunca saberei o que fizeram com aquela belíssima Enciclopédia Barsa e os volumes anuais de atualização.
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[Copyright do autor – Pseudônimo: Eça de Peroba]
4.julho.2023